Entrevista com D. Manuel Martins, Bispo Emérito de Setúbal: “Nunca se semearam fogueiras de morte por todo o lado como hoje”

Manuel Martins, natural da Diocese do Porto, foi o primeiro bispo da Diocese de Setúbal, onde iniciou o seu ministério episcopal no dia 26 de outubro de 1975. Nasceu a 20 de Janeiro de 1927, em Leça do Balio, concelho de Matosinhos, sendo ordenado sacerdote em 1951, após a formação nos seminários do Porto e seguindo-se a frequência do curso de Direito Canónico na Universidade Gregoriana, em Roma. Pároco da Cedofeita, no Porto, entre 1960 e 1969, D. Manuel Martins foi nomeado vigário-geral da diocese em 1969, e em 1975, Bispo de Setúbal. No dia 23 de Abril de 1998, o Papa aceitou o seu pedido de resignação. Em entrevista, ao Jornal Setúbal Mais, fala da situação actual do mundo e do país, dos ataques terroristas, da falta de qualidade dos políticos e dos silêncios da Igreja.

Florindo Cardoso

 
Setúbal Mais – No passado mês de Julho foi assassinado um padre que rezava numa Igreja em França. Como sente os ataques terroristas na Europa que matam pessoas inocentes?

Manuel Martins – O dom mais precioso que nos foi concedido foi o dom da vida. Ninguém tem o direito de o violar, qualquer que seja a circunstância: “Não matarás” –  aviso imperecível gravado na nossa alma. Nunca vivemos em paz, mas sempre em guerra. Parece que não podemos viver sem matar. Todas as razões valem, todos os modos valem. Todavia, e sublinhe-se a chorar, nunca se matou como hoje. Nunca os motivos foram tão estúpidos como os de hoje. Nunca se semearam fogueiras de morte por todo o lado como hoje. Podemos, desgraçadamente, repetir com o Papa: “estamos em guerra”. Posso repetir? – “Estamos em guerra”.

 

Setúbal Mais – Como vê o futuro desta sociedade, cada vez mais violenta, de fanatismos, sem apego pelo próximo?

Manuel Martins – Olho para o nosso mundo, para este mundo, com a maior preocupação. Desaparecem os valores basilares de uma Sociedade sólida e, sem eles, nada se constrói: o nosso pior futuro rasteja aí no sub-chão e ninguém, em lado nenhum, mesmo no altar, onde se canta a vida, se pode considerar seguro.

 

Setúbal Mais – D. Manuel Martins sempre foi a voz dos pobres junto das entidades competentes. Como encara o momento actual do país, sobretudo da crise que afecta os mais necessitados?

Manuel Martins – Em todo o lado, se vivem momentos de sofrimento e de preocupação, tendo só em conta as condições materiais. Também em Portugal. Quem o diria depois do 25 de Abril? Será exagero afirmar que muito do pior do 24 de Abril se escapou para o 25? É relembrar a loucura que se viveu e instalou durante o chamado PREC. Vivi-o em cheio. Foi um enorme pesadelo que se viveu em Portugal, feito de vingança, injustiça, agressões, ambições de toda a ordem. Sabem-me a um abominável pesadelo que não sou capaz de descrever.

Com a Constituinte, a situação melhorou. Mas, na minha pobre opinião, ainda não nos garantiu nem democracia, nem cidadania. E não por culpa sua. O Bem Comum não faz parte nem das preocupações dos nossos Políticos (honra a tantos que constituem a exceção), nem das Instituições legais criadas para o promoverem. Dói-me muito o mau curso da nossa Governação que (quase) só se preocupa com interesses pessoais, amiguistas ou de Partido. O nosso Parlamento, por vezes, mais me parece um campo de jogo de futebol, ainda por cima mal jogado, do que espaço sério e válido e de confiança onde se procuram as garantias mínimas para que a ninguém falte o pão de cada dia. Sente-se cada um em reflexão diante de um a um dos Direitos Humanos consignados na nossa Constituição (24-79) e ouse depois dizer alto o que pensa.

Com humildade o confesso: nem a Igreja o tem feito. Em tempo de tanta injustiça que exige tanta pergunta, vamos, com dor, encontrando uma Igreja calada. Igreja que tem o seu altar no mundo e, como o seu Fundador, deve ser a mais provocadora da História.

 

Setúbal Mais – Na sua opinião, o que é preciso fazer para ajudar o povo português a ultrapassar as dificuldades sociais e económicas?

Manuel Martins – Estamos perante uma pergunta que podia fazer parte de um doutoramento a preparar diligentemente por cada português. Resumo assim: consciência de cidadania (valho muito, nunca me deixarei manipular. “De pé diante dos homens”); procurar informar-me bem sobre o que seja essa tão cantada democracia, para quem o povo não conta ou conta só para propaganda caseira; escolher para quem nos governe, pessoas competentes, preocupadas com o bem comum, corajosas no respeito e aplicação da justiça. Em suma: gente em que possamos confiar por inteiro, que não nos engane com promessas vãs. (Repito o meu respeito pelas exceções, que as tem havido, por que as há).

 

Setúbal Mais – Está desde sempre ligado ao distrito de Setúbal, alertou para os problemas durante décadas enquanto Bispo. Como olha hoje para Setúbal que ainda sofre com o flagelo do desemprego e da pobreza?

Manuel Martins – Nem quero lembrar como encontrei Setúbal – muito pior que o resto do país da altura. No momento da minha ordenação, proclamei: “Nasci bispo em Setúbal, agora sou de Setúbal. Aqui proclamarei o Evangelho de Cristo – isto é, a justiça, a paz, o amor”. Deus e a História me julgarão.

 

Setúbal Mais – Qual a mensagem que gostaria de deixar aos setubalenses?

Manuel Martins – Desde a primeira hora, sempre considerei este povo como inquieto, de iniciativa, exigente, lutador, a quem estaria reservado um grande futuro. E assim vai sendo. Deus guarde Setúbal, esta terra que há mais de quarenta anos faz parte de mim.